Ana

Pra quem acha que cordel é coisa do passado, é bom saber que ele está vivinho da Silva e, para nossa sorte, não só no nordeste como em todo Brasil os cordelistas continuam criando suas histórias. Pra quem mora no Rio de Janeiro, uma boa forma de conhecer esse trabalho é visitar a Feira de São Cristovão. Outros exemplos de como o cordel estabelece um rico dialogo com nossa cultura nos dias de hoje são o trabalho de uma banda do circuito independente de música “O cordel do Fogo Encantado” e a novela “Cordel encantado”, em exibição na TV Globo.

Cena da novela "Cordel Encantado"

Anovela utiliza diversos elementos do cordel para criar um ambiente “encantado”, na qual a história narrada no sertão nordestino se constrói com constantes referências ao mundo da fantasia, criando de forma imaginária relações entre uma história do Brasil e o universo medieval, em personagens que misturam elementos vindos tanto de cangaceiros como de cavaleiros medievais. Há também uma ênfase na fala e no jeito de falar, marcada pelo ritmo e pela rima. Os cenários colaboram para conectar nossa imaginação com os campos da fantasia, onde se desenvolve o enredo.

Apesar de ter declarado seu fim no ano passado, a banda “Cordel do Fogo Encantado” foi responsável por um trabalho muito interessante por meio do dialogo entre música, arte cênica e cultura popular. Nascida no interior do sertão nordestino, na cidade de Arcoverde, a banda viajou por todo Brasil, durante seus mais de 10 anos de existência, levando sua alegria, mas também muita critica social, denunciando a precariedade da vida do nordestino que muitas vezes precisa deixar sua terra natal em busca de uma vida melhor, como mostra a música a seguir:

A relação com o cordel não está só no nome da banda, mas sim em toda uma forma de expressão que busca uma proximidade com a oralidade (fala) e os símbolos de identificação da cultura popular. O Clipe acima, por exemplo, traz esses elementos através da forte presença da religiosidade.

Note que o artista começa falando sobre um problema freqüente na região nordeste, as longas secas e o sofrimento da populaçãosertaneja que depende da chuva para o desenvolvimento das plantações e o sustento das famílias. Em “Meu povo não vá simbora pela Itapemirim”, os compositores fazem referencia à empresa de ônibus que realiza o transporte dos nordestinos para o sudeste brasileiro e completa: “pois mesmo perto do fim, nosso sertão tem melhora”, mostrando a esperança que resiste, na tentativa de impedir a migração em massa, apontando para a possibilidade de melhora quando vier a chuva em “O Céu ta calado agora, mas vai dar cada trovão de sacudir torrão de paredão de tapera”. As estrofes finais apontam para as melhoras vindas com a chuva, que chega trazendo mais uma vez a esperança de tempos melhores.Essa temática não é novidade na tradição musical brasileira, pelo contrario, ela vai ao encontro de outras composições famosas como “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que também aborda a questão das secas e da migração.

Asa Branca

(Luiz Gonzaga)

Quando olhei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornalha

Nem um pé de plantação

Por falta d'água perdi meu gado

Morreu de sede meu alazão

Até mesmo a asa branca

Bateu asas do sertão

Então eu disse adeus Rosinha

Guarda contigo meu coração

Longe longe muitas léguas

Numa triste solidão

Espero a chuva cair de novo

Para eu voltar pro meu sertão

Quando o verde dos teus olhos

Se espalhar na plantação

Eu te asseguro não chores não, viu

Que eu voltarei, viu

Meu coração

Por mais que a arte, neste caso a música, tenha encontrado um caminho para discutir os problemas do nordeste brasileiro pelo viés da questão natural, como a falta de chuva no sertão, é preciso pensar que ela não é a única responsável pelas mazelas do nordeste. Muito longe disso: uma história de exploração e corrupção marca o descaso por esta região brasileira, longos anos de abandono marcaram as políticas públicas voltadas para os estados do nordeste, sendo responsáveis também, e talvez mais até que as questões propriamente naturais, pela situação degradante da maioria da população, assim como pelas gerações e gerações de migrantes que atravessam o Brasil em busca de dignidade. Muitos, não a encontram.






2 Responses
  1. Lendo seu texto algumas questões me passaram pela cabeça. Qual será a opinião que nossos alunos tem sobre dignidade? O que é dignidade na concepção deles? Qual será o conceito deles de um ser humano digno? O será que se precisa ter ou fazer para ser digno de algum merecimento? Poderíamos desenvolver o conceito com eles em aula e depois pedir para que postassem suas conclusões aqui. O que vc acha?

    Bj, Carolzinha.


  2. Ana Says:

    Gostei da proposta, discutir o conceito de dignidade pode ser o primeiro passo pra lutar por ela:) beijinhos


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